Profissão

Devido à insatisfação deles em morrer - ainda pior, fazê-lo como um anônimo - seres humanos escolhem profissões para se rotularem e não serem descartados como 'outro', na coleta seletiva da grande Fábrica de reciclagem que é a Vida.

Desde pequenos são estimulados a pensar no que querem ser quando ficarem mais velhos, variando muito dependendo da visão de mundo que o círculo social permite. Isto é, não é que as crianças humanas pensem que querem seguir uma ou outra profissão por mero acaso, mas sim que desde o início são direcionadas a imaginar-se exercendo profissões com valor social elevado, segundo seus educadores. Não é verdade que eles atingirão esses objetivos infantis com sucesso, salvo algumas exceções, mas é por aí que começa.

O fim de algo só se dá quando se esgota a memória sobre ele. Após o esfriamento do corpo físico o que resta é a memória das pessoas com quem se conviveu. A profissão é uma das últimas coisas da qual se esquece quando se pensa num indivíduo. 'O médico', 'o traficante', 'o catador de latinhas' ou 'o professor', substituem mais facilmente Francisco, Adriano, Leonardo ou Gabriel - não respectivamente - do que qualquer outra conotação. Sendo assim, uma pessoa sem uma profissão sente que não tem a que ser ligada depois de sua passagem de volta à Fábrica.

Sobre as roupas

Tenho dificuldade em entender a vestimenta dos seres humanos. Ou, pelo menos, alguns porquês sobre ela.

Por exemplo, chegando mais um momento de desaproximação do Sol deles para o hemisfério em que tenho que viver para não pagar impostos, as coisas estão ficando um pouco geladas por aqui. Decidi então ir em busca de algo que me aquecesse o corpo. Sabendo que sou alérgico ao calor humano, principalmente os que vêm enlatados ou na forma de fast food, fui atrás de algumas roupas.

Para esclarecer uma curiosidade, a economia deles é bastante capenga, confusa, desonesta e peluda. Capenga porque pende para um lado mais do que para outros, evidentemente sempre pro lado minórico. Confusa pois é preciso passar uns bons anos numa faculdade só para poder ler um caderno do jornal. Desonesta porque nas vezes que acreditei nela ela me enganou. E peluda porque... Bem, coisas peludas normalmente não são de todo agradáveis de se engolir. Mas, enfim, vai funcionando do jeito que dá e tem um monte de humanos sendo suicidado só para mantê-la assim.

Continuando, para achar vestimentas fui encarar o ápice do atual modelo econômico deles: o Shopping Center. Andava por seus corredores sabendo que era observado por predadores que espreitavam de suas vitrines, prontos para abater minha carteira e se deliciar com a celulose coloridamente padronizada que tanto os agrada. A cada loja que passava perto para avaliar se os produtos serviriam aos meus interesses, mais me surpreendia com as artimanhas que desenvolviam para me convencer de que é muito melhor usar marrom-acinzentado em oposição ao cinza-amarronzado, e que a diferença estratosférica de preço é facilmente compensada pela total infelicidade das pessoas que não tiverem uma roupa de acordo com o gosto de uma Pessoa de Muito-bom-gosto (que eu nunca vou conhecer, nem mesmo para bater um papo).

Blusas e casacos eram meus alvos. Procurei em cada loja que achei que agradaria essa Pessoa de Muito-bom-gosto, mas estava muito difícil conciliar o gosto dela com o meu. O meu gosto é que uma blusa ou casaco me aqueça de verdade (assim, com terminações nervosas sendo estimuladas e tudo mais), o gosto dela é que o casaco faça com que eu pareça não me importar com o frio que estiver fazendo. Eu realmente tenho dúvidas se na Terra de Muito-bom-gosto chega a esfriar.
Enfim, o que concluí foi que as roupas que desempenham bem a função básica de uma vestimenta são as que menos agradam. As que agradam e desempenham parcialmente a função são as mais absurdamente caras. As que esquentam um pouquinho se se concentrar bastante em imagens mentais de lugares quentes, e até que não desagradam, não existem no seu tamanho. As que de fato agradam a Pessoa de Muito-bom-gosto são encontradas aos montes, pois as pessoas insistem em comprá-las e, passando frio, retornam para comprar mais, não percebendo que não adianta muito usá-las com esse propósito.



Bom, mantenha seu humano vestido, eles são muito feios quando pelados.

Cegueira

Sempre que um humano pára para pensar ele tenta abranger todas as possibilidades, todas as conseqüências dos seus atos e dos outros ou, no mínimo, mais ou menos o que se esperar deles.

Tenho plena certeza que isso é algo da qual eles se orgulham, e muito, quando acertam. E vale da mesma forma aos que acreditam nos instintos, sorte, intuição e sentidos extras - não só na razão bruta. É legal para eles sentirem o gosto da vitória sobre o destino, do controle e da pseudo-onisciência, por mais ilusório que seja.
Porém, quando erram é um momento de revelação. E afirmo que é o momento mais lindo de todos. É quando percebem por uma fração de tempo que o improvável acontece. Nesse momento os limites do possível se alargam, tornando-se milhares de vezes maiores do que eles conseguiam perceber. Suas mentes se transformam em algo entre bolinhas de gude e isopor, passando por pasta de dente e talvez um sofá, durante o processo em que compreendem sua inferioridade diante da imensidão das improbabilidades de um universo quase infinito tridimensionalmente. É lindo, bonito mesmo. Mesmo que não se diga isso olhando apenas para a face deles.


O fato é que eles enxergam três dimensões, se movem em quatro (uma delas com direção e sentido naturalmente imutáveis, o Tempo - mas ilusório quanto ao módulo) e tentam pensar em cinco, a dimensão das probabilidades. Só nessa matemática louca já se percebe como é complicado para eles tentarem antecipar as coisas. Eles não são cegos de nascença, mas criam bloqueios logo cedo para não acabarem enlouquecendo (ver infinitos mundos, com infinitos meios de sair de um útero, de diferentes perspectivas tempo-espaciais, assusta qualquer um - daí o choro incessante). Sendo assim, criam limites até certo ponto e dentro desse espaço mental constroem sua projeção de mundo. Cada vez que esses limites são quebradas se dá pelos erros cometidos ao tentar manipular mentalmente as probabilidades fora do seu mundo.

A diferença deles para com os outros animais terrestre é que eles tentam e tentam prever as conseqüências para se sentirem felizes ao final (não pelo prever em si, mas conseguir chegar às possibilidades mais favoráveis). Os demais animais simplesmente o são no presente e ponto. Ou seja, são cegos que saem tropeçando por aí em busca das chaves do carro para darem uma volta, ir ao cinema talvez, enquanto folheiam uma revista de moda ou de design de interiores, segurando velas por estar muito escuro no celeiro. E os demais animais vão andando aproveitando a brisa fresca de uma tarde de domingo no Outono, sem se preocupar se estão vestidos ou não.


Não lembro direito onde queria chegar, mas tem alguma coisa bem legal para se tirar desse texto para compreender e aproveitar da melhor forma possível o seu humano.

Timing

Para evitar desapontamentos e frustrações, e conseqüentemente fúria e processos judiciários contra minha pessoa, esclarecerei algumas questões envolvendo os seres humanos e o Tempo.

A primeira coisa já foi publicada aqui mais de uma vez e se refere à estupidez que é a insistência deles em tentar medir o tempo. Tempo é tão ilusório que só eles mesmo para calcularem suas vidas em algo assim. Falar que o pós-horário de almoço de Domingo no meio das férias deve ser medido na mesma escala (as tais horas, minutos e segundos, marcadas em relógios de pulso) que a manhã de uma Segunda-feira na hora do rush - quando faltam 15 minutos e 27 segundos para se chegar num lugar que normalmente se leva 23 minutos e 19 segundos (já contando com o limite do limite de atraso) - é ilógico.
É claro, para qualquer ser filogeneticamente mais desenvolvidos que orquídeas de plástico - se o dia para elas não passasse sempre como uma tarde de Domingo nas férias -, que estas concepções são coisas distintas. Mas é um conceito natural a eles - assim como a idéia de sempre ser puxado a 9,8m/s² para baixo - que o relógio, algo tão simetricamente sempre igual, não possa estar errado. Isto é, crêem neles mesmo sabendo que os relógios que medem o espaço temporal decorrido na movimentação dos astros tenham sido regulados pela movimentação desses mesmos astros, que ficam soltos num espaço vazio em que a todo momento sofrem influência de forças gigantescas acelerando-os em todas as direções possíveis, com pontos de referência móveis que em sua maior parte já inexistentes no Presente do Universo.

A segunda coisa se refere à Lei da Inércia da Procrastinação (ou Ausência de Motivação). Ela pode ser resumida na seguinte frase: 'Um ser humano em procrastinação tende a permanecer procrastinando até que uma motivação externa interfira na sua ação.'
O tempo como ferramenta psicológica é um excelente motivador. Se o humano acha que o tempo existe de uma certa forma, ele próprio existirá assim e produzirá nessa escala imaginária.

Uma terceira coisa é relacionada às duas acima, e é uma dica importante para o melhor desempenho de seu humano: A quantidade de tempo que um ser humano acha que tem para fazer algo é inversamente proporcional à quantidade de atividade que será realizada.
Normalmente ele simplesmente percebe em cima da hora que há coisa a serem feitas e tempo quase nulo para realizá-las. Conseguindo concluí-las todas com uma velocidade inexplicavelmente alta. (Já há estudos no campo de tecnologia de propulsão de naves para tentar aproveitar esse boost de velocidade para mover de maneira mais eficiente os veículos e afins.)

Portanto, conseguir que seu humano faça algo de imediato é uma questão de timing, dê-lhe a tarefa no momento em que ele parecer mais ocupado (mas avalie bem a ocupação dele, a procrastinação é terrivelmente camuflável). Haverá xingamentos, já aviso, mas o trabalho é eficiente.


Obs: É difícil não ser contraditório ao falar sobre o tempo usando uma linguagem baseada na inefabilidade do mesmo.

Rotina

Nas grandes cidades humanas, rotineira mas não previsivelmente, ocorre um evento curioso em que eles decidem ir nadando aos lugares ao invés de simplesmente caminhar. Deve ter algo a ver com as guelras que eles apresentam no estágio embrionário, algo adquirido por deriva genética inércia filogenética.

Enfim, para isso eles preparam durante meses os bueiros tampando-os para impedir o escoamento normal de água, para que assim tudo inunde com a primeira chuva que cair.
Ao menos foi essa conclusão a que cheguei, pois não encontrei nenhum outro motivo lógico para eles insistirem em jogar coisas no chão tendo plena consciência dos efeitos disso.

Os seres humanos agem curiosamente quanto à rotina. Quando percebem que as coisas estão na mesma há uma constante de tempo que consideram relativamente longa, decidem que querem mudar. Porém, se a quebra de rotina acontece de surpresa, entram em pânico.
Seja por uma conta que extrapole os gastos previstos, seja por uma companhia telefônica responsável pela conexão banda larga que fica fora do ar, eles se sentem impotentes de fazer algo e se frustram, ficam infelizes (ainda mais) e entram em pânico.
Mas não ficou claro o porquê do pânico que sentem ao sentir a água passando da altura do joelho quando chove. Todo o esquema de entupir o escoamento d'água parece tão bem arquitetado (sempre dá certo) que é quase impossível que seja um acidente. Mas ainda assim eles apresentam os mesmos sintomas de alguém que não esperava que uma coisa dessas fosse possível.


Enfim, quanto a cuidados com seu humano, a dica é que não o deixe largado por conta própria no seu jardim caso não esteja pensando em adquirir uma piscina natural ou coisa assim.